O BEIRADÃO, RITMO MUSICAL GENUINAMENTE AMAZONENSE
O Brasil, em seu extenso tamanho territorial, abriga diversas manifestações culturais oriundas, inicialmente, de portugueses, negros e índios e depois dos diversos grupos de imigrantes que chegaram ao nosso país. Dentre essas manifestações, a música é a que mais tem destaque tornando-se com o tempo a própria identidade cultural de algum estado brasileiro. Com o exemplo temos o Frevo em Pernambuco, o Carimbó no Pará, o Cururú em Mato Grosso, o Samba no Rio de Janeiro, entre outros.
Já no Amazonas, o maior Estado em
tamanho do Brasil, se destacam três ritmos musicais que foram desenvolvidos por
sua população e que expressam a cultura regional cabocla.
O primeiro é a Toada de
Boi-Bumbá, cujo ritmo e festa chegou ao Amazonas no século XIX, trazido por
migrantes nordestinos. Porém a batida musical do estilo, assim como a festa dos
bois, recebeu no estado influência e assimilação da cultura indígena e
ribeirinha, criando assim uma sonoridade particular. No Amazonas, os maiores
expoentes da Toada são os cantores David Assayag e Arlindo Júnior.
O outro ritmo amazonense é o
Gambá, oriundo do município de Maués e também presente em Borba. Ainda desconhecido e pouco divulgado no
estado, o Gambá surgiu no século XVIII, com influências indígenas e africanas. Pesquisadores
afirmam que o Gambá é avô do Carimbó.
O último, que é o tema desse
texto, é o mais atual e do qual iremos conhecer melhor: chama-se Beiradão.
A ORIGEM DO BEIRADÃO
O Beiradão é um gênero musical
surgido no interior do Amazonas e, entre seus maiores expoentes, estão os
tocadores de saxofone. Esse estilo surgiu e se desenvolveu nas diversas
comunidades ribeirinhas situadas nas beiras dos rios (daí o nome).
O então caboclo amazonense após
um dia exaustivo de trabalho, seja pescando, na roça, na extração da borracha, apanhando
castanha e açaí ou caçando, procurava em suas horas de descanso e lazer, aprender
as partituras de um instrumento musical que adotou como seu preferido: o Sax.
O desenvolvimento desse estilo teve origem ainda na época da borracha, no início do século XX e por volta das décadas de 1940 e 1950 já se registravam festas com saxofonistas no interior do estado.
Um anônimo tocador de Sax dedilhando o instrumento na cidade flutuante, em Manaus. Foto de 1963 da revista "O Cruzeiro". |
Nessa época era comum os
ribeirinhos ouvir, nas emissoras de rádio cujos sinais conseguiam chegar em
suas comunidades e vilas, ritmos dançantes vindos do Caribe como o Merengue e
Mambo, onde instrumentos de sopro se faziam muito presentes naquelas músicas, que
também faziam sucesso no Norte do Brasil. Sendo assim, os interioranos escolheram
o saxofone como seu instrumento principal, devido também a influência da banda
da Polícia Militar do Amazonas, que tocava seu repertório em várias localidades
do interior, com vários instrumentos de sopro, entre eles o Sax, que começou a
ser percebido melhor pelos ribeirinhos que logo depois o adotariam.
Além das influências musicais que
recebeu do Mambo cubano, do Merengue dominicano e da banda da Polícia, os
saxofonistas de Beiradão também tiveram influência de outros ritmos como a
Cumbia colombiana, a Lambada caribenha e o Carimbó paraense, dando origem ao
estilo tocado no Sax que, com letras curtas e solos dançantes, animava as
festas nas sedes de suas comunidades, em geral nos festejos em homenagem à
santos ou em celebrações de casamentos, com derrubação do mastro, torneio de
futebol e bingos, cuja festa terminava à noite nas mencionadas sedes
comunitárias, com algum saxofonista com seu conjunto animando o salão, com
danças que entravam pela madrugada e se estendiam até o raiar do dia.
OS PRIMEIROS SAXOFONISTAS DE
BEIRADÃO
Os saxofonistas precursores do
Beiradão eram todos nascidos no interior. Entre os primeiros, que durante as décadas de 1940 a 1960 já animavam as festas interioranas, estão Rafí, Agassiz, Garcia, Paulo Moisés, Crisóstomo Reis, Abílio, Zinho Monteiro, Antônio Bento, Lili
David e Dida Barreto, sendo eles oriundos dos municípios de Manacapuru e Careiro. Agassiz até hoje está
na ativa, tocando em festas com a sua famosa "Banda Manca". Lili
David teve um sobrinho que foi um dos primeiros a gravar discos de Beiradão
(Chiquinho David). Havia um outro chamado "Peruano", que no caso tocava clarinete.
Contudo, Paulo Moisés e Rafí, além de precursores, foram também os que tiveram mais destaque na época. Militares da Polícia, Rafí e Paulo Moisés eram considerados os melhores saxofonistas de todo o Amazonas e eles eram disputados 'a
tapas' pelos organizadores, que pretendiam o ter em suas comunidades nos
festejos.
Se dizia que a festa em que Rafí
estava tocando ficava lotada, pois muitos iam ao local apenas para ver sua
performance no Sax. Outra história famosa de Rafí menciona que ele foi convidado
para tocar no festejo de um rico fazendeiro, em sua grande propriedade. Chegando
lá o músico pegou seu sax e se dirigiu ao local onde iria tocar. Porém,
espantado, viu que não tinha ninguém para a festa. Foi quando chegou o
fazendeiro que pegou sua cadeira, sentou-se, e pediu para ele tocar durante
horas. Percebeu então que tinha sido contratado para tocar somente para o dito
proprietário.
Outro saxofonista precursor do
Beiradão, nas décadas de 1950 e 1960, foi o comerciante Antônio Vieira, que era
proprietário da "Casa Vieira", localizada no bairro da Colônia
Oliveira Machado, próximo à feira da Panair. Nascido também em Manacapuru,
Antônio tinha um conjunto com tocadores de banjo, tambor, pandeiro e
xeque-xeque, que tocavam todos os finais de semana em frente à casa do
comerciante.
É interessante saber que nessa
época os conjuntos que acompanhavam eram em sua maioria de instrumentos de pau
e corda (os já mencionados banjo, pandeiro, etc.). Somente anos depois que
passou -se a utilizar os instrumentos elétricos (guitarra, baixo e teclado).
Quem ainda preserva o estilo nos
instrumentos de pau e corda é a Banda Manca, de Manacapuru, liderada pelo
veterano saxofonista Agassiz.
TEIXEIRA DE MANAUS E A
POPULARIZAÇÃO DO BEIRADÃO NA CAPITAL AMAZONENSE.
Todavia, os saxofonistas de Beiradão
só eram conhecidos e faziam sucesso nas comunidades interioranas pois na
capital, Manaus, ainda era um estilo desconhecido por muitos. Mas, no começo da
década de 1980, isso tenderia a mudar, graças ao surgimento do solista de Sax
Teixeira de Manaus.
Teixeira de Manaus (ao centro, agachado) quando ainda fazia parte
do conjunto RT-4, antes de fazer carreira solo e gravar discos. Foto da década
de 1970. |
Teixeira, cujo nome de batismo é
Rudeimar Soares Teixeira, nasceu em 1944 na comunidade do Catalão, zona rural
do município de Iranduba. Filho de agricultores, foi mandado por seu pai à
Manaus para estudar. Com 18 anos aprendeu a tocar o Sax e formou uma banda
musical onde tocavam em boates, bares e casa de shows.
Porém, na década de 1970, o
cantor paraense Pinduca (o rei do Carimbó) veio à Manaus e viu Teixeira com
sua banda tocando em uma casa noturna e percebeu que ele tinha um grande
talento. Pinduca então encaminhou uma fita com as músicas de Teixeira para a
gravadora Copacabana, em São Paulo (gravadora que valorizava os ritmos
populares).
O então Maestro Rudeimar foi aprovado e, em 1980, viajou até aos estúdios da Copacabana para gravar seu primeiro disco e o primeiro de um saxofonista de Beiradão. O disco, intitulado "Teixeira de Manaus-solista de Sax-vol.1", foi lançado no final de 1980 e foi um sucesso no Amazonas e demais estados do Norte e Nordeste no ano seguinte, em 1981.Contendo músicas dançantes como "Lambada para dançar ","Ritmo jovem", "Cumbiando", "Teixeira de Manaus" e um chorinho chamado "Desmontando o Sax", estourou em Manaus, trazendo agora para a cidade grande o estilo musical dos ribeirinhos, sendo que o sucesso foi maior nos bairros da periferia.
A aceitação positiva do LP de Teixeira de Manaus abriu as portas em gravadoras para outros tocadores de Sax amazonenses, que já eram conhecidos nos interiores mas obscuros em Manaus.
Em 1982 Teixeira de Manaus lança
o seu segundo LP, outro grande sucesso no Norte e Nordeste. Naquele mesmo ano, outros
dois saxofonistas também lançavam seus primeiros discos: Chiquinho David e
Admílton do Sax. E na esteira deles, outros entram em estúdio para lançar seus
primeiros registros fonográficos. Eram eles os seguintes: Souza Caxias, Chico
Caju, Aurélio do Sax, Agnaldo do Amazonas, Toinho e Valério do
Sax. Também existia nessa época um outro famoso, chamado Valdecy do Sax que não chegou a gravar discos. O Beiradão fez também sucesso no vizinho estado do Pará, fazendo com que
surgissem ali dois excelentes saxofonistas paraenses, chamados Manezinho do Sax
e Pantoja do Pará, que também gravaram seus discos.
Naquela época, década de 1980, não
havia em Manaus nenhuma gravadora de LP e, por isso, os artistas de Beiradão
tinham que viajar até Belém, para gravar no estúdio da Gravasom (que pertencia
ao cantor Carlos Santos) ou iam até São Paulo, gravar na Copacabana.
Capa do primeiro LP de Teixeira de Manaus, lançado em 1981pela gravadora Copacabana. O disco, além de fazer sucesso nos estados do Norte, foi o primeiro registro fonográfico do gênero Beiradão.
Porém valia pena o esforço pois
esses precursores deixaram, pata as futuras gerações, gravações de um gênero
musical tipicamente amazonense e que, depois, por algum tempo ficou quase
esquecido.
O Beiradão fez muito sucesso no
Amazonas na década de 1980, tanto na capital como no interior. Prova disso é
que, no estado, Teixeira de Manaus vendeu mais discos do que o rei Roberto
Carlos.
Também as emissoras de rádio AM
de Manaus, como a Baré, Difusora, Rio-Mar e Ajuricaba, e também a rádio FM A
Crítica, ajudaram na divulgação e popularização daqueles saxofonistas na
cidade. O radialista Zé Mílton foi um dos principais incentivadores do Beiradão
naqueles anos, divulgando e organizando festas, tocando músicas em seu programa
e indo atrás de novos talentos do estilo para gravar (Chico Caju foi um deles).
O BEIRADÃO VAI PERDENDO ESPAÇO
PARA OUTROS ESTILOS
Desde o lançamento do primeiro
disco de Teixeira de Manaus, em 1981, e se estendendo até o ano de 1989, o
Beiradão fez sucesso no Amazonas (junto com outros estilos nacional e
estrangeiro como o Rock, Pop, Samba, New Wave, etc.). Mas, a partir do início
da década de 1990, o estilo foi perdendo força e espaço e as gravações
rareando, pois outros gêneros começavam a fazer sucesso como o pagode, o
sertanejo e as toadas de Boi-Bumbá.
Porém, mesmo assim, os
saxofonistas não desapareceram totalmente, assim como o estilo, e continuavam a
tocar nas festividades do interior. Até que, recentemente, o Beiradão foi
redescoberto e revalorizado.
O RESGATE
Um dos principais responsáveis
pela revitalização do ritmo Beiradão, hoje, é o músico e compositor amazonense
Hadail Mesquita que tem um canal no YouTube, onde divulga a nova geração de
artistas do gênero, a história e trajetória dos antigos saxofonistas e abre
espaço para todos os fãs do estilo.
Graças a ele, uma parte de uma
genuína manifestação da cultura do Amazonas não desapareceu por completo e, agora,
com mais divulgação nas mídias, velhos e novos artistas regionais vão
aparecendo. Entre eles estão Jonaci do Sax, Lázaro, Gordão do Sax, Diquinho,
Joãozinho, Chicão do Sax, Rosildo do Sax, Amarildo, Badico, Leandro Anselmo, Gabriel do Sax, Massaroca do Sax, Zé Amaro, Gaúcho do Sax, Moraizinho do Sax, João Simões, Fernando Amazonas, Oliveira do Sax, Zé Aurélio, Piu-Piu do Sax, etc.
Também a Orquestra de Beiradão (formada em 2013 por Ênio Pietro) ajudou a redescobrir e revalorizado o gênero Beiradão nos dias atuais. Não se pode esquecer também de outros veteranos artistas "beradeiros" como Dedé Ribeiro, Osvaldo do Sax e Walmer Sodré.
A ORIGEM DO TERMO BEIRADÃO
Antigamente o estilo dançante
tocado pelos saxofonistas do interior do Amazonas não tinha um nome definido e,
na falta de uma identificação do gênero, era comum as pessoas o chamarem de
forró.
Mas, com o tempo, se procurou
batizá-lo com um outro termo que pudesse ter mais identificação com a região e,
ao mesmo tempo, diferencia-lo do excelente e contagiante forró nordestino (pois
ambos os ritmos tem origem regional, batida, instrumentos e história
diferentes).
Capa do disco de Chiquinho David (acompanhado de sua banda), que
era um outro conhecido saxofonista amazonense. |
Optou-se então pelo nome "Beiradão
", que foi então aceito e incorporado ao ritmo na década passada. E qual a
origem? Uma delas é que na época passada, no auge do sucesso dos saxofonistas, era
comum os radialistas de Manaus anunciar as festas do interior da seguinte
forma: "Amanhã, haverá uma festa no beiradão do Janauacá", "No
sábado acontecerá as festividades no beiradão do Tabocal". Como se pode
perceber, o nome vem devido às comunidades se situarem na beira dos rios.
Outro motivo vem do romance
escrito pelo político e poeta amazonense Álvaro Maia, publicado em 1958, é
intitulado "Beiradão", que designava as margens dos rios da Amazônia
ribeirinha. Com isso, o termo passou também a representar a música que se
desenvolvia nas localidades interioranas.
É bom frisar que no primeiro disco de Teixeira de Manaus, de 1981, há uma música chamada "Beiradão". E também quando lançou seu único disco, em 1982, Admílton do Sax o batizou com o título de "Sax Beiradão". Mas é comum também chamar o gênero de "Forró de Beiradão".
CONCLUSÃO
Os saxofonistas são os artistas
que mais predominam no gênero Beiradão, sendo que o instrumento está presente
na maior parte das festas das comunidades ribeirinhas do Amazonas. Porém, nas
localidades próximas ao Acre, a predominância da sanfona é maior, é isso se
explica devido à intensa migração nordestina que houve para aquela área durante
o século XX, sendo que parte da população é de ascendência cearense, piauiense
ou potiguar.
O escritor e jornalista Fernando
Rosa escreveu um livro chamado "Ondas Tropicais ", onde analisa a
história de ritmos musicais surgidos no interior da Amazônia como a
"Guitarrada" (criada no Pará pelo Mestre Vieira) e o
"Beiradão" (surgido no Amazonas, sendo expoente máximo Teixeira de
Manaus).
Fernando deu um resumo simples
sobre o gênero musical amazonense:
"-Já o Beiradão é um parente
da Lambada que se sobressaiu mais no Amazonas, em que predomina o saxofone em
lugar da guitarra (mais comum no Pará)".
Uma comunidade ribeirinha do interior do Amazonas. Foi em locais
como esse que o Beiradão, como estilo musical, surgiu e se desenvolveu. |
Nos últimos anos foram até
produzidos dois documentários desse gênero musical, intitulados "Poética
dos Beiradões" e " O áureo da música do Beiradão nas rádios
manauaras", que contam a origem e ascensão do estilo, assim como seus
principais personagens.
Curiosidade: Em 2019 uma votação
promovida pela Rede Amazônica, na campanha "Manaus 350 anos", elegeu
uma famosa canção de Teixeira de Manaus como a música que é a cara de Manaus. Aliás
o saxofonista é considerado, até hoje, como o principal e maior expoente do
Beiradão. Também foi lançado recentemente pelo professor Bernardo Mesquita o livro "Das Beiradas ao Beiradão, a Música dos Trabalhadores Migrantes no Amazonas", um estudo pioneiro desse gênero musical.
É bom lembrar que o Beiradão tem nos saxofonistas os seus principais expoentes, mas o estilo também engloba bandas vocais, tecladistas e guitarristas das comunidades do interior que fazem suas músicas dançantes que também tem influência dos ritmos caribenhos.
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