NO AMAZONAS, ESTOURAVA A DENÚNCIA DE QUE DEPORTADOS DO RIO DE JANEIRO ERAM VENDIDOS NOS SERINGAIS DO RIO PURUS

A Revolta da Vacina ocorreu em novembro de 1904 na então capital do país, o Rio de Janeiro, motivada pela ordem de vacinação obrigatória  ordenada pelo presidente Rodrigues Alves, que gerou revolta na população, gerando graves conflitos e transformando a cidade  numa praça de guerra (essas pessoas protestavam também contra a carestia de vida e o descaso do governo). Devido a isso muitas pessoas, das classes mais pobres da população, foram presas e, por ordem do governo, deportadas em navios para bem longe do Rio de Janeiro, ou seja, para a Amazônia tendo eles como destino trabalhar nos seringais da região.

Além dos participantes da revolta (entre eles vários operários e capoeiristas) eram também mandados junto com eles pessoas consideradas indesejáveis pela sociedade, como prostitutas, cafetões, mendigos e trombadinhas.



Um bonde destruído pela população durante a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro. Vários dos participantes seriam depois presos e extraditados para o Norte do país.


A DEPORTAÇÃO

O primeiro navio, contendo os presos da Revolta, a sair do porto do Rio de Janeiro foi o "Itaipava", que zarpou da capital federal no dia 27 de novembro de 1904 levando a bordo 336 prisioneiros que foram confinados em porões sem luz e ar. Um contingente do Exército (formado por 100 praças) estava a bordo para escoltá-los e vigiá-los até seu destino final, sob o comando do capitão Emídio Sarmento. Fizeram uma parada em Recife. Durante a viagem, vários foram vítimas de tapas e pontapés dos soldados. O navio chegou à Belém do Pará no dia 9 de dezembro.

No dia 14 de dezembro, o Itaipava aportava em frente à Manaus, ficando ancorado na ilha do Marapatá. Dali os deportados foram embarcados em dois outros vapores menores, o "Santo Antônio" e o "Constantino Nery".

O Santo Antônio levou 211 deportados para o Acre, para a região do Alto Purus. Já o Constantino Nery levou 155 também para o Acre, na região do Alto Juruá. Ali os prisioneiros foram distribuídos nos vários seringais existentes. Outros 6 deportados ficaram em Manaus, talvez por problemas de doença.

 

A PARTIDA DO ITAPERUNA

A segunda remessa de deportados para a Amazônia seguiu no navio "Itaperuna", também com destino ao Acre, que saiu do porto do Rio de Janeiro no dia 10 de dezembro de 1904 contendo 347 infelizes amontoados nos porões sufocantes do navio e vigiados por 30 praças do Exército comandados pelo Tenente Arquimedes Rubim.

No dia 15 de dezembro o Itaperuna deu uma parada em Salvador, na Bahia, para se abastecer de carvão e água. No dia 22 o navio chega à Belém do Pará e, no dia 23, são embarcados 10 desterrados a mando do governador do Pará, Augusto Montenegro. Mas, é no dia 24 de dezembro (ainda em Belém) que embarca um indivíduo que vai se tornar o principal alvo de ódio dos deportados devido, segundo acusações, a seus atos desumanos.

Esse homem chamava-se José Ferreira da Silva, era português e tinha sido escolhido pelo governo do Pará, a mando do governo federal, para distribuir os deportados nos diversos seringais do rio Purus.

Assim que embarcou, o português encheu o navio de gêneros, sem pagar frete, e vendendo-os por um bom preço. Também foi acusado por testemunhas de vender as roupas  e chapéus destinados aos prisioneiros(que haviam sido dados pelo governo federal).

Mas a acusação mais grave foi de o emissário do governo paraense ter vendido e trocado os deportados por mercadorias, inclusive por porcos e galinhas, no rio Purus.

Porém os dois oficiais do exército responsáveis pela guarnição dos desterrados (segundo se dizia) não sabiam do que se passava e as negociações eram feitas às escondidas. Porém se espalhava a bordo a informação de que os soldados sabiam sim sobre aquele comércio revoltante, e nada faziam para impedir. Com medo, os prisioneiros preferiram ficar calados pois temiam sofrer agressões se tudo fosse revelado e não comprovado. 


DENÚNCIAS DE VENDA DE MERCADORIA HUMANA POR EMISSÁRIOS DO GOVERNO

Saído do Pará e entrando no Amazonas o Itaperuna passou por Manaus e, adentrando o Rio Purus, começou a distribuição dos degredados nos seringais à margem do rio no dia 1º de janeiro e, segundo as acusações, eram todos eles vendidos aos proprietários dos locais. Além dos deportados cariocas, haviam também entre eles alguns desterrados estrangeiros como espanhóis, italianos e portugueses.

No dia 10 de janeiro de 1905 o navio chegava na Vila de Canutama, no Estado do Amazonas, com 94 prisioneiros restantes. Assim que o Itaperuna aportou no porto da Vila (que hoje é uma cidade na margem esquerda do Purus) o local se encheu do povo para ver o desembarque dos condenados pelo governo. Muitas canoas encostaram próximo à escada de desembarque do navio.

E começou então um leilão desumano que as autoridades do governo federal ofereciam à população local e interessados, conforme depoimentos de várias pessoas. O emissário José Ferreira da Silva, e demais militares, ofereciam a mercadoria humana assim:

- "Temos aqui um bom alfaiate", "Aquele ali é cozinheiro e aquele outro é padeiro ".

E a população da Vila, vendo aquele ato irracional, sentiam pena daquelas pessoas e se negavam a fazer parte daquele espetáculo triste.

Um influente comerciante do local, o negociante Carlos Augusto da Fonseca, separou 17 deportados, pedindo a diversos amigos para separar mais alguns, o que fizeram.

Quando o comerciante saía do navio com os deportados escolhidos, o emissário José Ferreira da Silva pediu do negociante 50,000 réis por cada desterrado, na presença de várias pessoas, o que causou geral indignação.

Para felicidade dos desterrados, o Sr. Carlos Augusto era amigo do senador paraense Lauro Sodré, adversário do governo federal que lançou protestos contra a repressão do presidente Rodrigues Alves contra os participantes da Revolta da Vacina.

Carlos Augusto disse então para o emissário que por preço nenhum, assim vendidos como escravos, não desembarcaria um só desterrado e que em Canutama havia trabalho para todos. Mas que não havia lugar para gente que o governo do Pará e do Brasil mandava vender como escravos.

No final do discurso, Carlos Augusto acabou por erguer um viva a Lauro Sodré. O emissário português então, cabisbaixo e sem palavras, cedeu.

Em lugar dos 17, Carlos Augusto mandou desembarcar os 87, ou seja, todos os prisioneiros, seguindo viagem somente 7 deles que estavam gravemente doentes e ficariam num hospital em outra localidade rio acima.

Após serem os deportados cariocas alojados na Vila de Canutama, os comerciantes Carlos Augusto e Teodoro Botinelly, junto com demais moradores lhes ofereceu roupas, comida e empregos.

Dos 87 que ficaram em Canutama, cerca de 30 ficaram no local sendo que os demais, com ajuda de pessoas da Vila, conseguiram passagens para eles em vapores com destino à Manaus.



A foto é de 1912 e mostra o seringal Cassanduá, no Rio Purus, Estado do Amazonas. Ao centro se vê seu proprietário, o Coronel Trajano Alves. Era um dos seringais daquela região que, talvez, tenha recebido os deportados da Revolta da Vacina. 


A REVELAÇÃO DOS FATOS

Chegando na capital amazonense esses deportados passaram a ter também ajuda de várias pessoas da cidade e denunciaram à imprensa local tudo que ocorreu e que foi narrado em cartas e depoimentos. Um deles, chamado Nicácio, escreveu cartas para o "Jornal do Commercio" denunciando tudo. Afirmava que, antes de chegar em Canutama, a maioria dos deportados havia sido vendidos ou trocados por mercadorias aos seringalistas, sendo o organizador do nefasto comércio o já mencionado emissário José Ferreira da Silva, que inclusive recebeu recibos pela venda. Reforçou que toda a roupa e ranchos de comida que o governo federal havia destinado aos deportados fora vendido nos seringais pelo mesmo emissário. Nicácio aproveitou e agradeceu a todo o povo de Canutama por tê-los ajudados e por se terem recusado a fazer parte daquele ato desumano de venda.

 

A DEFESA DOS ACUSADOS

Com a guarnição do governo federal e o navio estacionado em Manaus após deixar todos os prisioneiros (e esperando zarpar para voltar ao Rio), o Tenente Rubim leu a denúncia do desterrado Nicácio e se apressou e mandar uma resposta ao Jornal do Commercio. Afirmou o militar que a maioria das denúncias era falsa e que jamais permitiria tal atitude reprovável a bordo. Mas o jornal mencionava que acreditava na palavra do Tenente, pois os degredados revelaram que a autoridade militar realmente não sabia o que se passava, pois tudo era feito secretamente, e eles também tinham medo de denunciar tudo ao Tenente Rubim, pois sabiam que os soldados os torturariam ou possivelmente os matariam caso tudo viesse à tona. Todavia, compareceu à redação do jornal o emissário José Ferreira da Silva, também afirmando que tudo era inverdade.

Mas ele não conseguiu convencer ninguém, nem os redatores do próprio jornal que afirmavam que existiam e tinham visto os recibos de venda daquelas pessoas e do qual existiam diversas testemunhas do caso que tinham procurado o jornal para relatar tudo.

O jornal também afirmava que muitos deportados tinham chegado à Manaus vindo do Purus, afirmando que só não chegaram nus devido terem roupas fornecidas por pessoas pois as vestes que o governo tinha fornecido haviam sido vendidas a bordo. Também afirmavam que havia uma tabela para os deportados vendidos nos seringais: as crianças eram de preços mais baratos, velhos com preços razoáveis e adultos mais caros.

 

OUTRAS ACUSAÇÕES DE TESTEMUNHAS

E as denúncias não paravam. Um marítimo que foi testemunha ocular do que aconteceu nos seringais do Purus, disse em carta que quando os deportados pisaram em terra se sentiram aliviados, dando graças a Deus por terem se livrado do emissário do governo do Pará, o famigerado José Silva. Na localidade de Penha do Tapauá (também no Amazonas) os deportados cariocas trabalhavam aliviados, dizendo que preferiam tudo isso do que ficarem presos nos porões escuros e quentes do navio Itaperuna.

Moradores da área do rio Purus, que se encontravam em Manaus, também escreveram uma carta ao distinto jornal afirmando que o Itaperuna tinha deixado no seringal em que eles trabalhavam 9 deportados só com a roupa do corpo e que o emissário aproveitava a ocasião para vender as roupas e o rancho destinado àquelas pessoas.

 

CONCLUSÃO

Como se disse, vários desterrados do Rio de Janeiro, com ajuda de várias pessoas, conseguiram sair do Purus e chegar à Manaus, indo eles dar seus depoimentos aos redatores do Jornal do Commercio. Diziam que não se queixavam tanto da viagem penosa que enfrentaram do Rio à Amazônia, mas sim do tratamento brutal que receberam do sr. Cardoso de Castro, chefe de Polícia do Rio de Janeiro.

Afirmavam que no interrogatório, no Rio, o Dr. Cardoso dava-lhes muitos socos e tapas no rosto (inclusive em homens já velhos), mandava torturá-los e espancá-los, para que eles dissessem os nomes de outros envolvidos na Revolta da Vacina. Concluíam os deportados, com lágrimas nos olhos e muita raiva, que nunca se esqueceriam da atitude e do abuso de autoridade do chefe de Polícia. 

Após a revelação desse escândalo, outros dois navios saíam do Rio de Janeiro trazendo mais deportados para a Amazônia: o "Itaipava", que novamente zarpou, no caso no dia 25 de dezembro  de 1904 levando 461 pessoas; o "Itapacy", que saiu em 4 de janeiro de 1905 com outros 400 prisioneiros .

 

Fonte: Jornal do Commercio (AM).

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