REMINISCÊNCIAS DO FOLCLORE DO NORTE DO BRASIL: O PRIMEIRO REGISTRO DO BOI-BUMBÁ NO AMAZONAS.
Imagens da festa do Garantido e Caprichoso, em Parintins. |
Hoje a cidade de Parintins, no interior do Amazonas, realiza
anualmente a famosa e belíssima festa do Boi-Bumbá, onde duas agremiações, o
Garantido e Caprichoso, duelam na arena, o Bumbódromo, esbanjando beleza e
magia e maravilhando a plateia.
O festival folclórico de Parintins é considerado a maior
festa folclórica do Brasil, sendo conhecida internacionalmente e levando muitos
turistas à ilha Tupinambarana para apreciar essa fascinante atração.
Nos dias atuais, o Boi-Bumbá e as toadas se tornaram parte
da manifestação cultural do Amazonas, onde existe várias agremiações de boi no
Estado que mantém viva essa importante cultura popular.
Mas, afinal, como surgiu o folguedo? e como chegou no
Amazonas?
PELA PRIMEIRA VEZ, UM ALEMÃO REGISTRAVA A FESTA DO
BOI-BUMBÁ EM MANAUS
Na verdade, o chamado Bumba-meu-boi se originou na Europa (em
Portugal e Espanha) no século XVI.O folguedo foi então trazido ao Brasil pelos
colonizadores portugueses onde se misturou com a cultura indígena e africana. É
no Nordeste do Brasil que a brincadeira do Boi teve início, por volta do século
XVIII, sendo que a primeira referência escrita da festividade, no nosso país,
aconteceu no ano de 1840 em Recife. O Maranhão foi o local do Brasil onde ele
mais se manifestou a ponto de ser inserido na cultura maranhense.
Do Nordeste o Bumba-meu-boi chegou à região amazônica onde
assimilou características próprias que a diferenciava, em alguns aspectos, do
Boi maranhense, e também passou a ser conhecido por outra denominação: Boi
-Bumbá
No Estado do Amazonas a festa do boi recebeu forte
influência da cultura cabocla ribeirinha, indígena e negra. Não se sabe ao
certo que época a brincadeira do Boi chegou em solo amazonense, mas sabe-se
qual foi a primeira vez que ele foi registrado, ainda no século XIX, e que
também foi um dos primeiros registros da festa do Boi na história do Brasil.
Em junho de 1859 o médico e pesquisador alemão Robert
Ave-Lallement embarcava, em Belém do Pará, no vapor "Marajó" rumo à
então Província do Amazonas, numa viagem que duraria cerca de 7 dias.
Médico alemão Robert Ave-Lallement, que fez o primeiro registro da celebração do Boi em Manaus |
Após navegar de subida o rio Amazonas, o "Marajó",
enfim, chegava e atracava em Manaus, a capital da jovem Província do Amazonas. A
cidade do império brasileiro, naquele ano de 1859, possuía uma população de
cerca de 9 mil habitantes, formada em sua maioria por caboclos, índios e
brancos, seguido de cafuzos e negros.
Assim que desembarcou, Robert se dirigiu à casa do agente da
Companhia de Navegação do Amazonas, senhor Guimarães, onde ficou hospedado.
Poucos dias após sua chegada em Manaus, no período dedicado
aos santos juninos, o médico alemão viu um animado cortejo em homenagem à São
Pedro e São Paulo, que era chamado pelos locais de "Bumba".
Numa noite, de longe, o alemão ouviu da janela da casa em
que estava hospedado, uma singular cantoria acompanhada de batuques. Surgia no
escuro da noite, subindo a rua, uma grande multidão que fez uma parada diante
da casa do chefe de Polícia, organizando-se eles na cantoria. Logo as chamas de
alguns achortes, lançadas pelos participantes, iluminavam toda a cena.
Tinha então início uma encenação, onde formaram-se duas
filas de pessoas negras, com os mais variados trajes, colocando-se uma diante da
outra, deixando assim um espaço livre.
Numa extremidade se via um Tuxaua, em traje de índio de
festa, com sua mulher vestida de saia curta de diversas cores e com uma coroa
de penas na cabeça, sendo que ela balançava os quadris de forma sensual. Diante
do casal havia um feiticeiro, um Pajé, e em frente ao Pajé, na outra
extremidade da fila, tinha um boi. Mas não um boi real, e sim uma leve e enorme
estrutura representando o boi, de cujos lados pendiam uns panos, tendo na
cabeça da armação dois chifres verdadeiros. Um homem carregava a estrutura na
cabeça, e ajudava a completar a figura de um boi de grandes dimensões.
Enquanto o côro de vozes acompanhava o batuque, o Pajé
avançava em passo de dança para seu par e cantava:
"O boi é muito bravo,
Precisa amansá-lo".
O boi, ao ouvir o canto, não gostou e empurrou com os
chifres seu par, também dançando para trás, rumo ao Tuxaua. Porém o Pajé
dançava e empurrava o boi novamente para trás, e o boi respondia voltando e
empurrando o Pajé. E assim durou a dança ao ritmo do maracá e ao canto dos
participantes.
Mas, no fim, o boi ficava manso, quieto, desanimado e caía
por terra e no mesmo tempo a batucada parava e todos silenciavam. Os brincantes
então chamam outro Pajé para socorrê-lo que começa a cantar e murmurar rezas diante
do boi, que não se mexe. O Pajé então ensaiava uma melodia mais eficaz, mas sem
resultado. Depois todos os brincantes tentam também ressuscitar o boi, sem
resultado. O boi estava morto.
Começava então, acompanhada de cânticos, uma dança de roda,
com saltos regulares e cadenciados, que com certeza exigiu muitos ensaios e
estudo. Com as mãos na cintura, todos os dançarinos davam um passo para frente
e outro para trás com o pé direito, fazendo uma pausa do compasso inteiro, e
repetiam os mesmos movimentos com o pé esquerdo, com graciosos balanços do
corpo. Dançavam assim, em volta do espaço central onde estava o boi morto, com
os archotes atirados que iluminavam a encenação, e que faziam maravilhosos
efeitos de luz.
Os brincantes agora cantavam sempre utilizando o termo
"lavandeira", e passavam a usar um lenço limpo para que pudessem
enxugar suas lágrimas devido a morte do boi.
E, para finalizar o espetáculo, todos se convenciam da
triste realidade da morte do boi e decidiram, como último grande ato, fazer uma
cantoria geral em que diziam:
" ...chora, o boi já vai-se embora".
Na verdade, queriam dizer que ele seria enterrado. E assim
os participantes partiam, cantando e batucando junto com seu boi, parando eles
na primeira esquina e repetindo a encenação, até altas horas, morrendo o boi
cinco ou seis vezes naquela mesma noite.
Essa e outras anotações de Robert durante sua passagem pela
Amazônia, estariam presentes em seu livro intitulado "No Rio
Amazonas", que foi lançado logo depois que voltou à Europa.
Porém nem tudo eram mil maravilhas, pois o Boi-Bumbá sofria um certo preconceito da sociedade manauara e da imprensa local da época. Um bom exemplo disso foi estampado no jornal "Commercio do Amazonas", de Manaus, em dezembro de 1870, quando houve na cidade uma grande festa em honra a São Sebastião, com um arraial e atrações organizadas por um clube (e com apoio da Igreja Católica). O jornal elogiava a celebração e dizia que folguedos daquela natureza eram os que mais moralizavam e civilizavam as camadas da sociedade, e não as apresentações dos "Bumbas com seus gambás".
Gambá, no caso, era um tambor presente na batucada do Boi. Com certeza a discriminação vinha pelo fato dessas manifestações musicais dos Bumbás serem oriundas das camadas mais pobres da população, cujos integrantes eram em sua maioria caboclos e negros.
Porém, esse preconceito não se restringia somente à origem dos brincantes, mas também à euforia da festa em si, que era criticada devido ao barulho da batucada, às danças sensuais e à bebedeira.
AS PRIMEIRAS AGREMIAÇÕES DE BOI EM MANAUS
Após esse minucioso, precioso e pioneiro relato de Robert
Ave-Lallement sobre a festa do boi no Amazonas, migrantes maranhenses começam a
chegar ao Estado no final do século XIX, atraídos pelo ciclo da borracha, fortalecendo
mais ainda a celebração do Boi-Bumbá, sendo já comum as festas de boi no início
do século XX, no mês de junho, na cidade de Manaus, principalmente na periferia
da cidade.
Um exemplo de um tímido registro da festa do Boi em Manaus
nesse período aconteceu em 1910, quando um célebre e famoso desordeiro da
cidade, conhecido como "Preto Gregório", havia esfaqueado fatalmente
um soldado do Exército e, ao fugir do delito durante a madrugada, se dirigiu ao
Boulevard onde havia uma apresentação de um Boi-Bumbá. Ao avistar dois soldados
na festa, Gregório fugiu rumo ao bairro do Mocó.
Porém é nas décadas de 1910 e 1920 que surgem as primeiras
agremiações organizadas de Boi-Bumbá em Manaus, que faziam suas apresentações durante
as festas joaninas. Essas pioneiras agremiações foram as seguintes:
Caprichoso (do bairro da Praça 14), Campineiro (se
apresentava na Rua Leonardo Malcher), Flor do Campo(do bairro dos Tocos, atual
Aparecida), Malabá (do bairro da Cachoeirinha), Canário (se apresentava na Av. Nhamundá),
Corre Campo (se apresentava na Praça Floriano Peixoto, na Cachoeirinha), Prata
Fina (do bairro de São Raimundo), Garantido (do Bairro da Cachoeirinha), Fuló
do Cajá (fundado pelos sócios do Rio Negro Clube), Mina de Ouro (do Boulevard Amazonas), Boa Vista (costumava dançar em frente à
redação do Jornal do Commercio), Almofadinha, Terra Firme, Deixa Fama, Estrela
de Ouro e Horizonte.
Já nas décadas seguintes, de1930,1940 e 1950, surgem outros
famosos bois pela cidade.
Hoje, as principais agremiações de Boi de Manaus são o Brilhante, Tira Prosa, Garanhão e Corre Campo.
NO FUTEBOL O RIO NEGRO CRIA UM BOI PARA PROVOCAR O CLUBE
RIVAL
A foto, tirada no campo do Luso em 1922, mostra um Boi formado por torcedores do Rio Negro para provocar o rival Nacional, os dois maiores adversários do futebol do Amazonas. |
Durante uma partida do Campeonato Amazonense, em Manaus, em maio de 1922, entre Nacional e Rio Negro, ocorreu um incidente em campo contra o jogador Parimé do Nacional, que foi atingido por Rochinha do Rio Negro sendo ele levado contundido, pelo presidente do Nacional (Vivaldo Lima), para a Santa Casa onde ficou internado.
O presidente nacionalino, então, exigia da Federação a expulsão de Rochinha do quadro da entidade e ameaçava o jogador rionegrino de ele responder na justiça por sua grave agressão. Foi aí que a diretoria do Rio Negro, desconfiando do caso, resolveu mandar o Dr. Adriano Jorge para a Santa Casa averiguar a real situação.
Chegando no hospital, Adriano exigiu ali uma junta médica com a presença do mandatário do Nacional, mas não foi atendido. Ele então aproveitou e verificou que Parimé tinha um simples baque na coxa, ou seja, nada de tão grave e que não seria necessário uma cirurgia. Os rionegrinos, após essa declaração do médico, descobriram que a séria lesão não passava de fingimento do atleta e entenderam que poderia ser uma manobra dos dirigentes do Nacional para prejudicar o clube adversário.
Movidos pela intensa rivalidade entre os dois clubes e para
provocar e zoar com os nacionalinos, torcedores e jogadores do Rio Negro criaram um Boi-Bumbá e saíram em grupo da residência de um influente sócio rionegrino, na Rua José Paranaguá até a casa de um dos diretores do Nacional na avenida
Joaquim Nabuco. Começaram a dançar e batucar na frente da casa dele e cantar a
música com versos de chacota contra o Nacional. E, por coincidência, apareceu
na casa o presidente do Nacional, Dr. Vivaldo Lima, que foi o alvo preferido
dos versos da canção. Nem precisa adivinhar que os dois ficaram furiosos com a
brincadeira.
Após isso os brincantes levaram o Boi até o campo do Luso
onde foi tirada uma foto e encenada sua morte.
NO INTERIOR
Após se consolidar na capital amazonense, a festa do Boi
chegou a outras localidades do Estado como em Parintins, onde em 1913 (ou em 1920
e 1925, as datas não são precisas) foram fundados os famosos Caprichoso e
Garantido.
Na Vila do Manaquirí havia, em 1928, o boi Amô Machucado,
que chegou a se apresentar em Manaus. Também surgiram, ainda na década de 1920,
outros bois em vários locais do vasto território amazonense.
Hoje vários municípios do interior do Amazonas mantêm viva
essa bela manifestação cultural e tem suas disputas e rivalidades entre seus
principais bois. Alguns deles, e de seus municípios são os seguintes:
Em Boa Vista do Ramos (bois Mina de Ouro e Tira Fama), na Vila do Mocambo (Espalha Emoção e Touro Branco), em Nova Olinda do Norte (Corre Campo e Diamante Negro), em Barreirinha (Touro Branco e Touro Preto), em Benjamin Constant (Mangagá e Corajoso), em Lábrea (Guerreiro e Estrela do Mar), em Itapiranga (Surubim e Mineirinho), em Fonte Boa (Corajoso e Tira Prosa) e em Itacoatiara (Coração Vermelho e Diamante Negro).
Fontes: Jornal do Commercio, Commercio do Amazonas, livro "Sete décadas de barriga preta" de Manoel Bastos Lira, livro "No Rio
Amazonas", escrito em 1859 por Robert Ave- Lallement
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