UM SERTANEJO COMBATENTE DE CANUDOS QUE SE REFUGIOU NO AMAZONAS

O grande artista e folclorista amazonense Moacir de Andrade relatou em um de seus livros que teve a oportunidade de conhecer, quando criança, um homem que foi seguidor do célebre Antônio Conselheiro e combateu por ele no arraial de Canudos, no interior da Bahia, contra as forças militares do governo brasileiro.

Tendo sido a Vila de Canudos derrotada e destruída, só restou ao dito personagem fugir, vindo então para o Amazonas onde se tornou seringueiro numa nova fase de sua vida. Ali onde trabalhava, num seringal do rio Aripuanã, estava o pequeno Moacir de Andrade acompanhando seu pai que também ali labutava na mesma função de seringueiro. Foi aí que Moacir passou a escutar as várias histórias que o veterano conselheirista falava à todos interessados de como se deu aquele sangrento conflito que ficou marcado na história do Brasil.

Seu nome era Antônio Brígido que era natural do Estado de Pernambuco e que sempre estava com um cachimbo do lado da boca. Moacir prestou muita atenção em cada detalhe da narrativa do homem que muitas décadas depois as publicou em um capítulo de um livro seu de recordações do passado.

O arraial de Canudos foi erguido em 1893, no sertão da Bahia, por ordem do cearense Antônio Conselheiro, tido como um messias que pregava o fim do mundo e a salvação para quem o seguisse e obedecesse às leis de Deus. Ele era contra a República, o casamento civil, o pagamento de impostos e a separação entre estado e a igreja. Logo ele arregimentou milhares de seguidores fiéis, todos sertanejos pobres que seguiam fielmente sua doutrina.

A Vila de Canudos passou a contar com 25 mil moradores onde todos ali viviam, conforme depoimentos da época e pesquisas, em uma igualdade social. Porém as notícias da existência de Canudos e de seu líder desagradou ao clero e aos fazendeiros poderosos da região que logo trataram de fazer denúncias ao governo brasileiro que tratou os seguidores de Conselheiro como "fanáticos monarquistas", dizendo que eram um mau exemplo e que tinham de ser detidos.

Foram preciso 4 expedições do exército brasileiro para conseguir derrotar Canudos no período de 1896 a 1897(as três primeiras foram derrotadas pelos sertanejos). No final a Vila foi destruída e grande parte de sua população massacrada, inclusive o líder Antônio Conselheiro.



Na ilustração à esquerda, se tem Antônio Conselheiro. Na foto à direita um combatente de Conselheiro é preso pelos soldados do exército. Na foto de baixo, um seringueiro em ação no Amazonas (função abraçada por Antônio Brígido).

 

A ORIGEM DE BRÍGIDO E SUA ADESÃO À CAUSA DE ANTÔNIO CONSELHEIRO

Antônio Brígido era um negro forte, de altura mediana, atencioso e que tinha uma grande cicatriz na mão esquerda, provocada por um tiro de fuzil durante um combate em Canudos, que lhe decepou três dedos e metade da mão esquerda.

Brígido nasceu em 1872 na então Província de Pernambuco, numa Vila chamada Brejo da Areia, que ficava próximo à divisa com a Bahia, sendo seus pais escravos.

Quando tinha 15 anos, em 1887,Brígido viu pela primeira vez um homem chamado Antônio Vicente Mendes Maciel, que ficou conhecido pelo povo como "Bom Jesus conselheiro" ou "Antônio Conselheiro", e que havia chegado em sua localidade.

Conselheiro ficou alguns dias pregando em Brejo da Areia já acompanhado de seus seguidores, vindo eles com seu líder por várias andanças no sertão árido. Foi aí que Antônio Brígido, no fulgor de sua adolescência, resolveu seguir aquele dito messias em suas pregações pelo sertão, sendo Brígido acompanhado por outros jovens de sua vila que também decidiram seguir Conselheiro.

Depois de peregrinar por vários lugares, Conselheiro resolveu se fixar em uma grande área na margem do rio Vaza-Barris, na Bahia, em 1893.E ali ergueu uma grande Vila que batizou de Belo Monte, mas que ficou conhecida como Canudos e que chegou a possuir muitas casas e uma igreja, onde todos ali seguiam fielmente as leis de Deus através de Antônio Conselheiro.

Nessa época, Brígido tinha 21 anos e já estava casado com uma jovem chamada Josefina de Alencar Brígido onde o casal tinha 4 filhos, todos de menor, tendo o mais velho 8 anos e que inclusive já ajudava seu pai no trabalho. Assim como todos os outros habitantes de Canudos, Brígido e sua esposa viviam em uma das casas da Vila se dedicando aos vários afazeres daquela comunidade.

Brígido descrevia Conselheiro como estando sempre vestido com um camisão de brim azul, empunhando um cajado de madeira, calçado com alpercatas de couro, barba e cabelos compridos e um cheiro de que levava a crer que nunca tinha tomado banho. Brígido sempre o via fazendo suas pregações para o povo de Canudos, mas nunca conversou com ele, se limitando a beijar-lhe uma das mãos algumas vezes.

 

A REAÇÃO DAS TROPAS DO GOVERNO

Foi então que as forças do governo entraram em ação para destruir o reduto dos "fanáticos monarquistas", enviando o governo da Bahia uma tropa da polícia militar, em novembro de 1896, que foi facilmente aniquilada pelo exército de Antônio Conselheiro, formado e armado entre os sertanejos voluntários de Canudos.

Vendo que o problema era maior do que esperavam, o governo federal entra em ação e envia outras duas tropas do exército, que também tiveram o mesmo destino.

Humilhado o governo e o exército por sofrerem tão vergonhosa derrota dos sertanejos, a resposta não tardaria em vir quando, enfim, o governo arma a quarta e poderosa expedição com maior poder de fogo e maior número de combatentes, formado por soldados vindos de todos os estados do Brasil.

Então o exército cerca Canudos, bombardeando o lugar. O exército de Conselheiro resistia bravamente, mas o poder de fogo das tropas do governo eram maiores.

 

ANTÔNIO BRÍGIDO PERDE A FAMÍLIA, É FERIDO E FOGE

Quando a expedição estava prestes a derrotar definitivamente Canudos, um dia antes de sua queda, Brígido viu seus 4 filhos serem mortos por um tiro de canhão e sua mulher ser também morta, caindo ela a seus pés pela mesma bala de canhão.

Mesmo assim Brígido continuou lutando, atirando de sua espingarda de uma trincheira junto com seus companheiros pois agora tinha de lutar por sua vida. Mas uma bala destruiu sua espingarda, arrancando os três dedos de sua mão esquerda e metade da mão até o pulso.

Sem poder mais lutar devido estar sem arma, sem munição e sem parte de sua mão, Brígido resolveu abandonar a trincheira e fugiu pelo lado Norte de Canudos, passando por entre as balas e pisando sobre centenas de cadáveres em avançado estado de putrefação.

Com a mão sangrando Antônio Brígido andou a noite toda entre a caatinga, evitando os locais onde haviam soldados fujões e feridos que também se internaram por aquela área sertaneja e que, se o avistassem, pudessem delatar seu paradeiro.

Já se queimando em febre devido o ferimento e completamente tonto, Brígido resolveu descansar entre umas grandes pedras no meio da caatinga. Ali ele pôde cortar os pedaços de sua mão que estavam pendurados,  lavou o ferimento com urina quente e o enrolou com um pedaço de sua camisa.

Durante à noite eis que Brígido, ainda no meio das pedras, é surpreendido com a chegada de outros 4 fugitivos de Canudos e que também combateram o exército, sendo que um logo ali morreu e os outros três ainda conseguiram resistir até o clarear do dia. Um tinha os intestinos pra fora que ele segurava com as mãos ensanguentadas e os outros dois, sem um dos braços, gritaram de dores até morrerem.

Desesperado em ver a morte dos colegas e com medo de ali ser descoberto por alguma patrulha do exército, logo que o sol raiou Brígido saiu dali e continuou correndo sob o forte cheiro dos corpos espalhados pela região, tanto de sertanejos como de soldados.

Brígido andou o dia todo até encontrar uma humilde casa perdida no sertão, cujo dono apareceu e viu o estado do fugitivo. Sem lhe perguntar quem era, o homem cuidou de sua ferida e o alimentou por alguns dias. Depois Brígido agradeceu ao seu benfeitor e continuou sua fuga, agora com destino à Pernambuco, onde ali estaria livre de seus perseguidores.

Enfim após dias de exaustiva caminhada sob o sol quente Brígido chegava em Pernambuco, sentindo ele um grande alívio. Mas mesmo assim ele procurava tomar cuidado pois para todo lugar que ia só ouvia as pessoas falarem sobre o conflito em Canudos e a caça que o exército estava fazendo aos sobreviventes seguidores de Conselheiro.

Antônio Brígido estava magro, pálido, com poucas roupas e cabelos compridos onde se dirigia às feiras das vilas e cidades pequenas pedindo esmolas. Sempre dormia no pátio das igrejas ou sob o telhado de casas abandonadas.

 

DESERTORES FAZEM AMIZADE COM BRÍGIDO E LHE INFORMAM SOBRE SUAS IDAS PARA O AMAZONAS

Um certo dia dois homens desconhecidos chegaram próximo à Brígido de surpresa e perguntaram: -"Você está fugindo de Canudos?". Pego inesperadamente e tendo um choque emocional, Brígido, mesmo sabendo que uma confirmação positiva pudesse custar sua vida mas que dizia que nunca tinha sido um covarde, respondeu o seguinte: -"Estou sim".

Os dois homens então falaram que eram desertores do segundo batalhão que viera do Rio de Janeiro para destruir Canudos e que tiveram notícias de que o governo do Amazonas estava contratando pessoas em Recife para tirar borracha naquele estado, e que por isso fugiram e se dirigiam para lá com a finalidade de serem selecionados para o trabalho no corte da seringa, como também para escaparem de serem pegos pelo exército e condenados à prisão ou morte por traição.

Brígido ganhou a amizade deles, mesmo ainda receoso, afinal tinham sido soldados do exército com a finalidade de matar os seguidores de Conselheiro. Só depois de muito tempo começou a confiar nos ex-soldados, mas mesmo assim se separou deles e viajou para outras localidades do interior de Pernambuco onde trabalhou num engenho de açúcar por mais de um ano.

Lá ele teve notícias de que realmente estavam contratando gente para trabalhar nos seringais do Amazonas tirando borracha e que a função estava dando muito dinheiro.

 

O ANTIGO COMBATENTE DE CONSELHEIRO RESOLVE IR PARA O AMAZONAS - SOFRIMENTO NOS SERINGAIS

Foi então que Brígido decidiu vir se aventurar para o Amazonas, com a finalidade de ganhar dinheiro na extração do látex e ao mesmo tempo ficar o mais distante de uma possível descoberta do exército de sua existência.

Brígido foi então para Recife, embarcando num navio a vapor com destino à Belém do Pará, em 1899.Já estando na capital paraense ele embarcou em um outro navio com destino à Manaus. E de Manaus foi selecionado para trabalhar de seringueiro num longínquo seringal na margem do rio Aripuanã.

Chegando ali, começou sua nova função de trabalho, extraindo e defumado o látex para depois o produto ser embarcado.

Embora dissesse que tinha encontrado a paz que perdeu na Bahia devido à guerra, Brígido afirmava que tinha conhecido outras dificuldades no Amazonas como o trabalho insano nos seringais do centro das matas do Aripuanã, onde não havia nada que o fizesse vencer aquela solidão da floresta. Outra foi ter contraído malária que quase todos os anos o atacava, deixando-o à beira da morte, e tendo também o perigo de ser atacado por índios hostis à presença dos seringueiros naquela área. Mas, como ele mesmo disse, devido sua forte fé em Deus pôde vencer as doenças e a solidão.

Jamais Brígido conseguiu juntar dinheiro pois tudo que produzia naqueles seringais era para pagar as dívidas ao patrão que não terminavam nunca. Sem poder reclamar do roubo que sofria em sua conta e saldo (pois isso poderia acarretar em agressões a ele ou talvez a morte), Brígido tinha de ficar calado e continuar trabalhando até o dia em que conseguisse dali se libertar das dívidas e sair.

 

RELATOS DE SUA EXPERIÊNCIA EM CANUDOS PARA TODOS NO SERINGAL- ATROCIDADES E CICATRIZES QUE JAMAIS SERIAM SARADAS

Em suas horas vagas, costumava sentar e falar aos mais jovens os detalhes da guerra que participou onde afirmava que jamais poderia esquecer tudo aquilo, que ainda surgia aos seus olhos como se ainda estivessem acontecendo. Dizia que suas noites eram sempre despertadas por sonhos e barulho dos tiros de canhões que mataram sua mulher e filhos, que foi bem próximo onde ele estava ficando sua roupa suja do sangue dos filhos.

Brígido também lembrava que quando os soldados cercaram o arraial de Canudos, ajudado pelos bombardeios, o massacre, as degolas e os estupros se intensificaram.

Ao aprisionar os sertanejos os soldados exigiam que eles gritassem "viva a república", mas muitos, sabendo que iam morrer, gritavam "viva o meu Deus", e eram na sequência degolados.

Quando os soldados invadiram Canudos, encontraram vários sertanejos gemendo, feridos, mas ainda vivos. Os soldados os obrigavam a se levantar, amarrava as mãos deles para trás, levantavam a cabeça pelo nariz e cortavam o pescoço. As mulheres eram desonradas na frente de seus pais e maridos, por três a cinco soldados, e também eram degoladas.

Brígido completava dizendo que quando olhava sua mão pela metade e faltando três dedos, era como se abrissem as cortinas de um teatro macabro para assistir àquele morticínio.

Não se sabe o que aconteceu a Antônio Brígido, mas provavelmente tenha passado seus últimos dias de vida no Amazonas (ou teria voltado à Pernambuco, sua terra natal?), restando somente seu relato passado por outros do sofrimento que enfrentou num dos principais episódios da história do Brasil.


Fonte: livro "Os acontecimentos de um Amazonas de ontem", de Moacir Andrade; Jornal do Commercio.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A IMIGRAÇÃO ITALIANA NO AMAZONAS

O INTEGRALISMO NO AMAZONAS (1934-1937)

PERSEGUIÇÃO À "PAJELANÇA" NO AMAZONAS NO INÍCIO DO SÉCULO XX