O CHOQUE, EM 1870, ENTRE O "PURUS" E O "ARARY" - O PRIMEIRO GRANDE ACIDENTE FLUVIAL DA HISTÓRIA DA AMAZÔNIA

 A navegação a vapor foi introduzida na região amazônica no século XIX através da Companhia de navegação e comércio do Amazonas, que foi fundada por Irineu Evangelista, o Barão de Mauá.Com isso foi realizada a primeira viagem de um navio a vapor na região quando o "Marajó" saiu do porto de Belém no dia 1⁰ de janeiro de 1853, levando cargas e passageiros, chegando à Manaus no dia 11 do mesmo mês e sendo recebido com entusiasmo e alegria pela população.

Uma nova era da história da navegação tinha início no norte do Brasil com a comunicação e locomoção de pessoas das províncias do Pará e Amazonas sendo mais facilitadas. Nos anos seguintes, mais barcos a vapor chegavam à região e mais linhas eram inauguradas.

Mas, alguns anos depois daquela viagem inaugural, aconteceu no Amazonas um triste fato, quando dois grandes navios protagonizaram o primeiro acidente de grande proporções, até então, acontecido nas águas dos rios da Amazônia e que teve repercussão geral, cujo acidente teve inúmeras vítimas fatais.



Ilustração de dois navios a vapor, quase idênticos ao Purus e Arary, navegando por um rio no século XIX.


Era o ano de 1870, ainda durante o período monárquico, e existiam nesse ano dois modernos e grandes navios a vapor que faziam suas viagens regulares entre as províncias do Pará e do Amazonas.Chamavam-se "Arary"e "Purus".

O Purus pertencia à Companhia Fluvial do Alto Amazonas e foi encomendado pelo dono e gerente da companhia,Alexandre de Brito Amorim,vice-cônsul de Portugal em Manaus e um dos primeiros empreendedores da navegação na Amazônia.O navio foi construído em 1868 e chegou ao porto de Belém em dezembro de 1869.

Já o Arary pertencia à Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas,de propriedade do Barão de Mauá.O navio tinha o casco de ferro e fora construído também em 1868 na cidade de Liverpool,na Inglaterra.

Ambos os navios começaram então a singrar os rios da Amazônia fazendo linha entre as duas principais cidades e capitais da região,ou seja,entre Belém e Manaus.


A PARTIDA DO PURUS DO PARÁ RUMO AO AMAZONAS - VIAGEM TENSA

Na madrugada do dia 22 de junho de 1870,o Purus saía do porto de Belém,a capital da Província do Pará,com destino à Manaus,a capital da Província do Amazonas,levando a bordo mercadorias e um total de 204 pessoas entre passageiros e tripulantes.Era seu comandante o português Eduardo Joaquim Corrêa de Brito.

Mas a viagem não foi tranquila (talvez um presságio do que iria acontecer) pois houve um encalhamento do navio,um maquinista que vivia furioso,uma peça da máquina que se partiu,um passageiro que quase morreu afogado,falta de combustível,brigas a bordo entre passageiros e tripulantes e a falta de um imediato para assumir seu turno no comando da embarcação.

Finalmente,após vários dias de viagem,o Purus chegava à Manaus às 2 horas da tarde do dia 5 de julho,contendo várias famílias com os nervos à flor da pele devido aos lamentáveis acontecimentos ocorridos a bordo durante a viagem.Mas com a chegada em Manaus os passageiros tranquilizaram-se pois pensavam que a viagem a seu destino final seria agora na maior paz.


A SAÍDA DO PURUS DE MANAUS COM DESTINO AO RIO MADEIRA

O Purus,então,saiu de Manaus às 10 horas da noite do dia 7 de julho,com destino agora ao rio Madeira,onde deixaria nas localidades daquele rio cargas e passageiros.

Contudo em Belém do Pará também havia há dias saído do porto da cidade o vapor "Arary",em direção à Manaus e levando muitos passageiros,tendo o navio como comandante o capitão de mar e guerra Pereira Leal.

Quanto ao Purus,seguia ele seu curso normal após deixar a capital amazonense.O navio navegava rio abaixo com meia força devido a recomendação do comandante que,cansado devido ao trabalho que durante o dia e até aquela hora pesaram sobre ele,fora repousar, confiando o comando do leme a seus práticos.

Era uma e meia da madrugada do dia 8 de julho,quando o Purus aproximou-se da boca do lago do Puraquequara,na costa do lago do Rei,quando se avistou o farol do vapor Arary,que vinha no sentido contrário (de subida) margeando a costa do lado esquerdo,com 228 passageiros a bordo.

Na época essa região era quase desabitada,com fortes correntezas do rio e com milhares de jacarés.Neste lugar o rio forma uma espécie de cotovelo,ou ponta.Ambos os vapores navegavam em marcha regular em sentido contrário,mas devido a grande curva ali formada pelo rio,impedia de um avistar o outro.

Infelizmente o prático do Purus,que segundo testemunhas estava bêbado,mudou o rumo do navio demandando a embarcação rumo à terra por estebordo,quando deveria ele levar à bombordo,como ia fazer,mas que ele não fez devido ter tomado para si a roda do leme,direcionando-a toda para esterbordo como fizera antes.

O oficial de quarto do Arary,vendo as luzes do Purus,mandou acordar o comandante Pereira Leal que logo dirigiu-se ao passadiço da caixa de rodas,ordenando ao maquinista,em voz alta,que diminuisse à meia força.Mas os dois navios vinham cada vez mais próximos,um pela força da corrente do rio e de sua máquina,e o outro somente pela força do vapor. O comandante do Arary não percebeu a manobra que a embarcação que vinha à sua frente iria fazer e,depois de mandar pôr o seu navio à força regular,soltou o apito para dar sinal de sua presença.Porém já era tarde, pois em menos de um minuto se deu a colisão.

A noite estava bem escura e os passageiros dormiam tranquilamente em suas redes e beliches.


A COLISÃO FATAL - NAUFRÁGIO, EXPLOSÃO E MAIS DE 100 MORTOS

Às 2 e 15 da madrugada o Purus foi então atingido violentamente pelo Arary,sendo ele atravessado a bombordo perto da caixa de roda.O Arary então transpôs sobre o Purus, entrando-lhe por um dos lados,dobrando-o e quase unindo a a popa com a proa.

Com o impacto as pessoas,atordoadas,eram acordadas pelo grande barulho do choque e lançadas de suas redes e beliches.Gritos horríveis partiam dos dois navios,pais chamavam por seus filhos e pediam socorro,mães imploravam a proteção de Deus para seus filhos,esposos tentavam salvar suas companheiras,todos pediam misericórdia e clamavam aos céus,a confusão e o desespero eram total.

Nesse momento o comandante do Purus,Eduardo Joaquim Corrêa de Brito,corre aflito para salvar um passageiro,mas é lançado ao rio por uma grande quantidade de lenha que se desprendeu e caiu sobre ele(mas ele conseguiu sobreviver).

Logo em seguida o Arary dá marcha-ré e se desprende do Purus,ficando o Arary com um grande rombo na proa.Já o Purus,atingido pela proa,viu entrar jorros de água que produziu a explosão das suas duas caldeiras,causando a detonação várias mortes,fazendo assim o navio rapidamente afundar.

A correnteza do rio era muito forte,ficando mais forte devido o choque e a explosão das caldeiras do navio.Passageiros e tripulantes do Purus,que haviam escapado de morrerem afogados dentro das câmaras do navio ou pela correnteza ou então no momento do impacto,flutuavam no rio no meio dos destroços do navio,enquanto uns se agarravam nas toras de lenha,outros procuravam se desviar de projéteis lançados do navio devido a explosão e que caíam na água.

A margem estava próxima e vários dos passageiros nadavam para alcançá-la,mas a força da correnteza os impedia empurrando-os para o meio do rio.Porém a maioria deles morreram afogados e devido a explosão,enquanto outros eram atacados e devorados no rio pelos jacarés que infestavam aquela área.

Quanto ao Arary,parte de sua tripulação agora tratava de consertar a sua proa danificada e de reparar outros estragos,enquanto outros tripulantes se ocupavam em resgatar do rio,em botes a remo,as pessoas que não haviam perecido.Contudo,relatos davam conta que a mesma tripulação do Arary não arriscou lançar no rio mais botes de resgate devido o forte rebojo que fez desaparecer outros infelizes,o que com certeza levaria também ao fundo os referidos botes que poderiam ter salvado mais vidas.

Somente 73 pessoas do Purus sobreviveram,enquanto mais de 100 perderam a vida.Dentre os sobreviventes,13 deles foram salvos por um pescador que morava nas imediações chamado Cirillo,que milagrosamente apareceu ali em sua canoa,quando rebojos d'água já lhes ameaçavam arrastar para o fundo do rio.

Os sobreviventes,após serem resgatados pelo Arary,continuavam em desespero cabendo ao comandante tentar ali restabelecer a ordem e acalmar a todos.

Após o naufrágio do Purus,o Arary afastou-se do local da tragédia mas logo depois voltava ao mesmo ponto do acidente onde ficou parado até ao amanhecer do dia,com a esperança de encontrar alguém à deriva no rio e com vida. Contudo,não encontraram mais ninguém e resolveram continuar sua viagem até Manaus com os sobreviventes ainda em choque,que agradeciam em suas rezas por estarem vivos e lamentavam em choros por aqueles que não tiveram a mesma sorte.



Durante o naufrágio, vários passageiros que ficaram à deriva no rio foram devorados por grandes jacarés-açú que tinham aos milhares naquela área.


A CHEGADA DO ARARY À MANAUS E A TRISTE NOTÍCIA.

Enfim o Arary surgia defronte à Manaus,chegando na capital amazonense ao meio dia de 8 de julho,ficando ali fundeado.Foi então que um bote do vapor Inca se dirigiu ao Arary,trazendo três autoridades:o tenente Freitas Guimarães,Urbano Câmara e Bento Aranha.Ao entrar no navio as autoridades viram a grande avaria que sofreu o barco e souberam do trágico acidente que havia acontecido e do afundamento do Purus.

Os três homens então se dirigiram à terra e deram a triste notícia.Em pouco tempo a trágica novidade se espalhou pela cidade de Manaus,gerando pânico na população que,desesperada,corria em peso para o porto e penetravam a bordo do Arary,para ver se seus parentes ou amigos estavam entre os sobreviventes.

O presidente da Província do Amazonas,coronel José Miranda da Silva Reis,e o chefe de polícia João José Freitas Guimarães,atenderam ao clamor dos sobreviventes que lhe pediram para socorrer ou encontrar outros possíveis sobreviventes.O presidente então atendeu aos pedidos e mandou 3 lanchas da flotilha e uma do corpo policial para o local da catástrofe.O chefe de polícia,com alguns empregados e o agente da companhia,prestaram-se a ir também ao local no vapor Inca,que saiu do porto às 4 da tarde.Também ajudou nas buscas o experiente comandante Talismã de Figueiredo.

Apesar das buscas e esperanças,não foi encontrado nenhum corpo ou sobrevivente,sendo que o vapor Inca ficava no meio do rio acompanhando as lanchas,ficando uma à procura pelo lado direito do rio e as outras duas pelo lado esquerdo.

Somente dias depois é que populares localizaram o corpo de um passageiro,que passou boiando no rio em frente à Vila de Serpa(hoje cidade de Itacoatiara),junto com alguns baús e fragmentos do navio.

Depois de terem sido consertadas as danificações que sofreu, o Arary seguiu viagem deixando Manaus às 8 da noite do dia 12 de julho com destino à Belém.

Ainda no mesmo dia chegava à Manaus o pescador Cirillo, que salvou 13 pessoas do naufrágio, relatando a todos os fatos do triste acontecimento e recebendo ele agradecimentos por sua atitude heroica.

No navio a vapor Purus que naufragou, iam cerca de 200 passageiros e entre alguns dos 73 sobreviventes estavam o capitão Pedro Luiz Sympson, o escravo Anselmo, o maquinista Luiz Antônio Gonçalves e os menores Thiago e João Marques. Já entre alguns dos mortos estavam Josefa da Silva, a escrava Veneranda, Inocêncio Lobato, Geraldo Andrade Lemos, Tenório Braga, Ana de Andrade Pinto e Cândido Ferreira Duarte.

Houve depois o comentário de que, na noite fatal, houve um atrito entre o prático do Purus e o marinheiro que vinha ao leme sobre qual caminho deviam seguir no rio, o que acabou ajudando para acontecer o desastre.

MISSA EM AGRADECIMENTO E EM MEMÓRIA ÀS VÍTIMAS DO NAUFRÁGIO.

Em Manaus o senhor Emílio Rodrigues de Oliveira convidava os sobreviventes do Purus para uma missa em ação de graças à Nossa Senhora de Nazaré, em agradecimento às vidas que se salvaram e em memória e lembrança aos mortos no naufrágio. A missa aconteceu no dia 13 de julho, às 6 horas da manhã, na Igreja dos Remédios.

Os passageiros do Purus que sobreviveram ao desastre, agradeceram, via imprensa, à tripulação do Arary pela dedicação em salvar suas vidas, em especial ao mestre João da Silva Ferreira e ao maquinista Chaves.



Anúncio da empresa Companhia de Navegação do Amazônas, proprietária do Arary, estampada no jornal Commercio do Amazonas, em 1876.


ACUSAÇÕES DE NEGLIGÊNCIA E DEPOIMENTO DO TRIPULANTE.

Devido às acusações de que teria havido negligência por parte dos condutores do Purus, foi chamado a depor e apresentado ao chefe de polícia do Amazonas o tripulante de bordo do mencionado navio, de nome Antônio da Silva Lacerda, que era quem estava no leme no momento do choque. Interrogado, ele disse à autoridade que ao avistar as luzes do vapor Arary, que navegava próximo à margem e estando o Purus também junto à margem, temeu o pior. Ele então declarou ao prático, chamado Madeira(e que disse estar ele embriagado),que era conveniente levar o navio para fora da margem, pois que o navio que desce deve ir pelo meio do rio, e que o prático não concordou com isto, continuando a dizer para seguir o mesmo rumo.

Antônio disse que ainda relutou afirmando que, se não mudasse o rumo, iriam colidir com o outro navio. Porém ele não foi atendido e Antônio, pressentindo o perigo, disse que chamou outro prático (afirmando que também estava bêbado) que também discordou dele, dizendo que tinha que continuar na mesma direção. E mal haviam acabado de conversar quando aconteceu o desastre.

Perguntado qual o oficial que estava no comando naquela noite fatídica, respondeu que não tinha ninguém pois que o mestre, que era quem devia estar, se encontrava dormindo no andar de baixo. Esta mesma revelação foi feita na presença do comandante da flotilha,1⁰tenente Pinto.

CONCLUSÃO

O acidente fluvial no longínquo ano de 1870 na então Província do Amazonas, entre os vapores Arary e Purus, além de ser o primeiro de grande repercussão na Amazônia e com grande número de vítimas, foi também um dos maiores na história de desastres fluviais do Norte do Brasil, ficando para sempre registrado para a posteridade que, conforme as fontes da época, teve como causa a negligência de seus condutores.


Fontes: jornal Commercio do Amazonas, Jornal do Commercio, livro "Lembranças e curiosidades do Vale do Amazonas", de Francisco Bernardino de Souza.


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