LIBERTADOR x INDEPENDÊNCIA: UMA ANTIGA E ESQUECIDA RIVALIDADE DA HISTÓRIA DO FUTEBOL AMAZONENSE

Durante a década de 1920 o encontro entre as equipes do Rio Negro e Nacional já estava consolidado como a principal e maior rivalidade do esporte bretão na terra de Ajuricaba e que se tornaria também o maior clássico da história do futebol no Amazonas, pois ambos os clubes já naquela época possuíam as maiores torcidas e os melhores jogadores do estado, além de conquistarem o maior número de títulos no campeonato estadual e em torneios.

Porém durante os anos de 1925 a 1931 existiu em Manaus um outro clássico menor do futebol amador amazonense que, mesmo estando à sombra do "Rio-Nal”, então o mais importante encontro do pebolismo baré, não deixava por menos em termos de rivalidade e paixão, e que por algumas vezes terminou em conflito.

Esse duelo, que foi marcado por episódios de muitas provocações de ambos os lados, foi protagonizado entre as equipes do Independência e do Libertador.

O motivo principal e que acendeu a chama da competitividade e rivalidade ferrenha entre eles foi que os dois clubes eram oriundos do mesmo lugar, ou seja, ambos foram fundados no bairro dos Tocos, hoje chamado de bairro de Aparecida.

O bairro de Aparecida é um dos mais tradicionais e antigos bairros de Manaus, situado na zona sul da cidade e colado ao centro comercial, local conhecido por sua tradicional feira e novena na sua igreja nos dias de terça-feira, reduto de conhecidas famílias que fizeram história na sociedade manauara, além de possuir a pujante escola de samba de Aparecida.

Nas primeiras décadas do século XX quando o futebol começava a se popularizar em Manaus, vários dos pioneiros atletas do jogo bretão residiam no bairro como o jovem Manoel Fernandes da Silva, o popular Fernandinho, que foi um dos fundadores do Nacional e morava na rua Bandeira Branca, quando Aparecida ainda tinha sua denominação de bairro dos Tocos.

Porém já na década de 1920 jovens amantes do futebol, e que eram moradores do local, resolveram dar origem a dois clubes no Tocos para assim participarem da vida esportiva da cidade e representarem o seu bairro no campeonato estadual. E o desejo deles passou da ideia à prática, fazendo surgir, no mesmo ano, o Independência e o Libertador.


Na foto de cima se tem jogadores e dirigentes do Independência em 1929. Na ilustração de baixo, de Lucio Izel, se tem um jogo entre Libertador e Independência no Estádio Parque Amazonense. 


A ORIGEM DO INDEPENDÊNCIA

O Independência Football Club surgiu no dia 7 de setembro de 1925 e nasceu da iniciativa de um grupo de rapazes residentes no bairro dos Tocos. Esses amigos resolveram formar um time provisório para jogar no vizinho bairro de São Raimundo onde para lá se dirigiram, empatando eles com o time local no dia 5 de setembro de 1925.Animados com o empate, eles voltaram à São Raimundo para uma revanche, no dia 7 de setembro, e venceram os São-Raimundenses por 3x1.

Contentes pela vitória adquirida em terreno inimigo os jovens voltaram a seu bairro de origem e naquele mesmo dia do triunfo, resolveram se reunir na casa de um dos integrantes da equipe, Izauro Pacheco, que ficava na Rua Xavier de Mendonça, n⁰267.

Ali decidiram então fundar um clube de futebol cujo nome escolhido foi Independência, devido naquele dia estar sendo comemorado a data em que o Brasil se tornou independente de Portugal. Quanto a escolha de sua primeira diretoria, o sócio Jerônimo Ferreira Alves foi eleito presidente e Marcolino Lopes ficou encarregado de ser o capitão do time titular. É bom saber que Marcolino jogava no Nacional, mas também passou a jogar, vez ou outra, pelo Independência, pois além de ser um dos fundadores do clube era também morador do bairro.

As cores escolhidas para o nascente clube foram o vermelho e branco e sua sede social, nos seus primeiros anos de vida, se situou em vários endereços e que foram os seguintes: de 1925 a 1926 a sede do Independência estava na rua Xavier de Mendonça,n⁰66.De 1927 a 1928 ficou situada na Av.Epaminondas,n⁰86.Ainda em 1928 o endereço do clube se mudou para a Av. Eduardo Ribeiro,n⁰88.Já em 1929 o clube estava no prédio de número 11 da rua Barroso.

Além do futebol, o Independência ficou famoso nesses anos pelos bailes carnavalescos que promovia em sua sede, inclusive chegaram a ter um bloco de carnaval, chamado "bloco independente”, que era formado somente por torcedores do clube.

O momento de mais destaque na história do Independência foi a pioneira excursão que o clube fez ao Maranhão e Pará, em 1929, realizando jogos com os principais times daqueles estados.

A ORIGEM DO LIBERTADOR

Por falta de informações precisas, não se sabe ao certo o dia e mês que o Libertador Sport Club foi fundado e nem quem foram seus idealizadores, mas sabe-se que foi no início de 1925 pois a primeira informação conhecida sobre a existência do clube vem do dia 28 de março daquele ano quando foi anunciado um jogo do Libertador contra o time do Velha Guarda, a se realizar no dia seguinte no campo da Vila Municipal.

Como se pode perceber, o Libertador surgiu antes do Independência e as cores escolhidas para o clube foi o preto e vermelho, passando assim o Libertador a ficar conhecido como o rubro-negro do bairro dos Tocos.

O clube também realizava suntuosos bailes carnavalescos em sua sede social.

Aliás durante seus 6 anos de existência (pois foi extinto em 1931), o Libertador teve sua sede social nos seguintes endereços: em 1925 a sede do clube estava na rua Ramos Ferreira, n⁰ 89, e depois foi para a rua Carolina das Neves, n⁰ 10. Em 1926 o clube estava na rua Xavier de Mendonça, n⁰15 e depois foi para as ruas Leonardo Malcher, n⁰16, e Gustavo Sampaio, n⁰3.Já de 1927 a 1930 estava novamente na rua Xavier de Mendonça, n⁰15.

O clube não conquistou nenhum título estadual, mas abocanhou o torneio início de 1927(derrotando o Nacional) e ganhou um torneio, em 1928, na festa da data de aniversário do Rio Negro. Foi também vice-campeão amazonense de 1928.

Um dos jogos mais importantes da trajetória do clube foi a derrota que ele sofreu de 3x1 para o time da União Sportiva de Belém do Pará, que estava de excursão por Manaus em janeiro de 1930.

O INÍCIO DA RIVALIDADE ENTRE ALVI-RUBROS E RUBROS-NEGROS

Assim que o Independência foi fundado, o Libertador logo se apresentou como seu principal adversário, afinal eram oriundos do mesmo bairro e chegaram inclusive a ter suas sedes situadas na mesma via pública, ou seja, na rua Xavier de Mendonça.

A maioria de seus torcedores e jogadores eram do mesmo local de suas origens, no bairro dos Tocos, e as provocações, xingamentos e rivalidades entre eles era constante. Inclusive essa rivalidade era anunciada até em chamadas de jogos entre eles nos jornais de Manaus.

A maioria dos jogos do Libertador com o Independência aconteceram no campo do Luso e no Estádio Parque Amazonense, valendo pelo campeonato estadual ou por torneios. O primeiro jogo conhecido entre os dois clubes aconteceu em 27 de setembro de 1925, entre os times reservas, cujo duelo aconteceu no campo do Bosque Municipal e do qual não se sabe o resultado final.

Já o primeiro jogo dos times principais das duas equipes ocorreu em 3 de janeiro de 1926, também no Bosque Municipal e sem se saber o placar final.

Pelos resultados conhecidos dos jogos entre os dois rivais no campeonato amazonense, o Libertador saía sempre na vantagem, como bem atestam os números e cujos resultados foram os seguintes:

•Libertador 5x2 Independência (campeonato de 1926);

•Libertador 2x2 Independência, Libertador 3x1 Independência (campeonato de 1927);

•Libertador 3x2 Independência, Libertador 2x1 Independência (campeonato de 1928);

•Independência 1x0 Libertador, Libertador 8x3 Independência (campeonato de 1929).

Infelizmente, não se sabe o resultado dos confrontos entre os dois clubes nos campeonatos de 1930 e 1931.

Além disso, se tem resultado de um jogo amistoso em 1929 em que o Libertador ganhou por 3x0 e também de um empate de 1x1 num torneio de 1928.Já em 1926, num outro jogo em um festival, o Libertador derrotou o Independência por 2x1.

PANCADARIA E PRISÃO EM JOGO NO CAMPEONATO DE 1927

Era o dia 8 de maio de 1927, num domingo à tarde, e Libertador e Independência realizaram seu primeiro encontro válido pelo primeiro turno do campeonato amazonense de futebol.

O jogo seria no campo do Luso e o público presente não foi tão numeroso devido à forte chuva que havia caído na cidade naquele dia e que ameaçava desabar novamente. O juiz escalado para dirigir o jogo foi o senhor Waldemar Braga, e os dois rivais se apresentaram assim em campo:

• INDEPENDÊNCIA: Pascarelli, Otávio e Catarino; Samuel, Sabá e Adamastor; Demóstenes, Walfredo, Negreiros, Otaviano e Abelardo.

• LIBERTADOR: Amorim, Vítor e Ricardo; Damião, Venâncio e Jaú; Armando, Palheta, Vicente, Paixão e Joaquim.

O jogo foi truncado e corrido, terminando empatado em 2x2. Mas o pior estava por vir. Quando o juiz apitou o fim da partida e quando os torcedores já se retiravam eis que em campo os jogadores do Libertador e Independência partiram para a briga, com muitos socos, pontapés e rasteiras, entrando também no conflito os membros da diretoria, numa confusão que se estendeu para fora de campo com a participação de cerca de 50 pessoas.

No meio do conflito o jogador José Paixão, do Libertador, deu um forte chute no baixo ventre de Walfredo Reis, jogador do Independência, fazendo ele cair ao solo em dores.

Interveio a polícia que acalmou os ânimos, pondo fim à pancadaria, e cabendo ao comissário Souza prender o agressor em flagrante às 18 horas, e fazendo recolher a vítima para a enfermaria da Santa Casa de Misericórdia.

Já estando na cadeia, o jogador José Paixão, através de seu advogado, dizia constrangido que estava preso injustamente, afirmando que não foi ele que cometeu a agressão do qual era acusado.

Paixão jurava que não tinha participado da confusão e que a autoridade policial, o comissário Souza, na luta retirou de cima da vítima (Walfredo)o Sr. Samuel Israel, que a testemunha afirmava ser a pessoa que realmente tinha dado o chute quando estava atracado com Walfredo.

Mas o comissário Souza deu voz de prisão para Paixão, não tendo o policial de fato visto o verdadeiro autor do delito, tendo Paixão sido preso porque alguém citou seu nome como sendo ele o autor da agressão a Walfredo. A acusação era também motivada pela intensa rivalidade entre os dois clubes, pois Paixão dizia que a ilegalidade de sua prisão vinha também de uma perseguição de seus adversários do Independência.

Quanto ao jogador Walfredo, ele ficou em estado grave, conforme o laudo do exame do corpo de delito, apresentado pelos médicos legistas.

O advogado de Paixão dizia que ele estava preso sem culpa formada, sem ter chegado ainda à polícia o laudo do médico legista. Acusava o Dr. Chefe de Polícia de abuso de autoridade ordenando que Paixão, sem ainda ter culpa formada, fosse recolhido à casa de detenção.

Paixão também acusava ser vítima de perseguição, se vendo inclusive privado pela polícia do serviço de defesa de seu advogado que não teve a liberdade de acompanhar o inquérito. Ele pedia urgentemente o "habeas corpus" para que lhe acabasse o constrangimento, como bem lhe garantia a constituição.

O médico legista esteve com a vítima na Santa Casa de Misericórdia na noite do dia do incidente e não prestou os socorros devidos, só vindo a fazer no dia seguinte, o que fez Walfredo esperar por mais de doze horas pelos curativos.

O próprio médico, Dr. Linhares de Albuquerque, foi chamado pela diretoria do Independência para avaliar o caso de seu atleta. O médico, então, afirmou que Walfredo estava sendo bem cuidado, estando o paciente fora de perigo.

JOGADOR DO INDEPENDÊNCIA É PEGO NA MENTIRA

Existia um jogador do Independência chamado Eustáquio, que trabalhava de tipógrafo. Eustáquio, que jogava de centro- médio, tinha por hábito chegar atrasado nos jogos do Independência, já com os times em ação, o que causava irritação nos dirigentes do clube alvirrubro. Perguntado por qual motivo dele nunca chegar há tempo nos compromissos em campo, Eustáquio afirmava que era devido estar participando de almoços na casa de amigos.

Mas, como ele era o único jogador daquela posição, sempre era tolerada essa sua falta e ele era perdoado.

Certa vez, num jogo valendo pelo campeonato amazonense no campo do Luso (possivelmente em 1927 ou 1928), estavam em campo os velhos rivais do bairro dos Tocos, Libertador e Independência.

Como de costume, mais uma vez Eustáquio chegou atrasado, precisamente cinco minutos após o início da partida.

Samuel Mota, presidente do Independência, já havia conversado com o juiz Oscar Rayol, pedindo permissão para que o habitual faltoso entrasse em campo assim que chegasse. Sendo assim o juiz permitiu sua entrada no jogo, mas antes Eustáquio se justificou para o juiz e para o presidente de seu clube afirmando que, como de costume, a sua demora se deu devido ele estar participando de uma deliciosa tartarugada na casa do prefeito de Manaus.

Seguia então o jogo que tomava proporções violentas e quedas de lado a lado.

Mas Vicente, zagueiro do Libertador, chocou-se violentamente com Eustáquio, jogando-o ao chão, queda essa que provocou um distúrbio digestivo no pobre centro-médio, fazendo-o vomitar em campo.

O massagista do Independência, chamado "Beiçola”, foi socorrer Eustáquio e ao voltar para fora de campo, falou baixinho ao ouvido de Samuel Mota assim: -"Que Deus me perdoe, peguei o caboclo na mentira, ele não comeu tartaruga nenhuma, é mentira, o vômito dele era de pirarucu desfiado".

E assim ficou constatada a mentira do Eustáquio, passando ele, a partir dali, a ser intensamente zoado pelos jogadores e torcedores do Libertador.

CONCLUSÃO

Infelizmente o Libertador se extinguiu para sempre em 1931, deixando seu fiel adversário, o Independência, órfão de seu primeiro rival. Aliás o Independência ainda perdurou por um bom tempo, tendo participado pela última vez do campeonato amazonense em 1960, sendo logo em seguida também extinto. Nessa época o clube já tinha um novo rival que ocupou o lugar deixado pelo Libertador: era o São Raimundo.

E assim se sabe um pouco de uma página da história dos primórdios do futebol no país das Amazonas.


Fontes: Jornal do Commercio, Arquivo do Judiciário do Amazonas.

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